Marcadores

Acontecimento (14) Alegria (33) Caos (50) Combate (11) Comédia (2) Crítica (32) Dedicatória (33) Experiência (49) Fim (23) Ilustração (1) Música (8) Narrativa (24) Pensamentos (57) Photo (2) Positividade (40) Recomeço (33) Recorte (13)

domingo, 15 de janeiro de 2012

Tradição

            O próprio som da palavra evoca uma certa noção de seriedade e solenidade. Tradição. Suuz'chok, na língua dos drow, e nela também, como em todas as línguas que já ouvi, a palavra escapa dos lábios com um peso e um poder tremendos. Tradição. É a raiz daquilo que somos, o elo com nossa herança, o lembrete de que nós, como povo, se não como indivíduos, atravessaremos as eras. Para muitas pessoas e muitas sociedades, a tradição é a fonte da estrutura e da lei, o fato permanente da identidade que nega as pretensões contrárias do pária ou a má conduta do ladino. É o eco no fundo de nossos corações, de nossas mentes e de nossas almas que nos faz recordar quem somos ao reforçar quem fomos. Para muitos, é ainda mais do que a lei: é a religião a orientar a fé do mesmo modo que orienta a moral e a sociedade. Para muitos, a tradição é a encarnação de um deus, os rituais antigos e as escrituras sagradas, garatujadas em pergaminhos ilegíveis e amarelados pelo tempo, ou então cinzeladas em pedras eternas.
            Para muitos, a tradição é tudo.
            Pessoalmente, entendo-a como uma faca de dois gumes que pode cortar ainda mais fundo no caminho do erro.
            Em Menzoberranzan, vi a tradição em ação: sacrifício ritual do terceiro varão (que quase foi meu próprio destino) e as obras das três escolas dos drow. A tradição justificou as investidas de minha irmã durante a formatura da Pugna-Magthere e negou-me o direito de protestar contra aquela cerimônia vil. A tradição mantém as Matriarcas no poder e limita a ascensão dos homens. Mesmo as guerras violentas de Menzoberranzan, casa contra casa, têm raízes na tradição e justificam-se porque as coisas sempre foram assim.
            Esses defeitos não são exclusivos dos drow. Sento-me com frequência na face norte do Sepulcro de Kelvin e observo a tundra inane e as luzes cintilantes das fogueiras nos vastos acampamentos dos bárbaros. Ali também está um povo inteiramente consumido pela tradição; um povo que se apega a códigos e costumes antigos que outrora lhes permitiram sobreviver, como sociedade, numa terra inóspita, mas que agora os atrapalham tanto quanto ou mais do que os ajudam. Os bárbaros do Vale do Vento Gélido seguem os rebanhos de caribus de uma extremidade a outra do vale. Tempos atrás, era a única maneira de sobreviver tão ao norte, mas quão mais fácil poderia ser sua existência agora se simplesmente comerciassem com a gente de Dez-Burgos, oferecendo peles e carne de boa qualidade em troca de materiais mais resistentes trazidos do sul para a construção de casas mais permanentes?
            Tempos atrás, antes que a verdadeira civilização se insinuasse tão ao norte, os bárbaros recusavam-se a falar com – ou até mesmo aceitar – qualquer outra pessoa no Vale do Vento Gélido, e as diversas tribos geralmente se uniam com o único propósito de expulsar os intrusos. Naqueles tempos, os recém-chegados inevitavelmente competiriam pela comida insuficiente e outros suprimentos escassos, e essa xenofobia era necessária à sobrevivência básica.
            A gente de Dez-Burgos, com suas avançadas técnicas de pesca e seu rico comércio com Luskan, não compete com os bárbaros – a maioria jamais comeu carne de caça, creio eu. E, no entanto a tradição exige que os bárbaros não façam amizade com essas pessoas e, de fato, geralmente guerreiem com elas.
            Tradição.
            Quanta seriedade essa palavra transmite! Que poder enverga! Assim como nos enraíza, proporciona-nos uma base e nos dá esperança por sermos o que somos por causa do que fomos, também provoca a destruição e nega a mudança.
            Eu jamais aspiraria a entender um outro povo bem o bastante para exigir que este mudasse suas tradições, mas quão tolo me parece agarrar-se tenaz e obstinadamente a esses hábitos e costumes sem consideração pelas mudanças que ocorreram no mundo que nos cerca.
            Pois este mundo é um lugar em constante mudança, movido por progressos na tecnologia e na magia, pela ascensão e queda de povos e até mesmo pela mistura de raças, como nas comunidades de meio-elfos. O mundo não é estático e, se as raízes de nossas percepções e tradições mantiverem-se estáticas, então estaremos condenados, acho eu, a um dogma destrutivo.
            Então recairemos sobre a lâmina mais perversa dessa faca de dois gumes.

Drizzt Do'Urben



Texto transcrito do livro “A Estilha de Cristal”, o primeiro volume da trilogia “O Vale do Vento Gélido”. Não sou o mais fã de postagens de autores e/ou obras reconhecidos(as). Neste caso, o texto me fez refletir muito sobre “como as coisas no mundo são e acontecem”. Mesmo que alguns personagens e locais não façam sentido, para quem não conhece a narrativa do livro citado, acredito que o conteúdo e o contexto sejam de fácil entendimento.

Nenhum comentário:

Postar um comentário